"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 6 de junho de 2017

O GOLPE DA ELEIÇÃO DIRETA

Por que o PT considera o Congresso ilegítimo para eleger o próximo presidente, conforme expresso na Constituição, mas legítimo para promover emenda constitucional?

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, em 31 de maio, o projeto de emenda constitucional que dispõe sobre eleição direta em caso de vacância presidencial até um ano antes do fim do mandato. A PEC ainda terá longa tramitação — e, para se impor, depende de votações, em dois turnos, nas duas casas do Parlamento.

Não importa. Esse puxadinho constitucional — de natureza oportunista e pretensão imediatista — é inválido, pois corrompe dois artigos da Constituição Federal combinados: o 81, que afirma que o pleito, no cenário delineado, seria indireto, e o 60, que trata de cláusulas pétreas e veda mudança na periodicidade da eleição para o exercício em curso. Há ainda, a ser subsidiariamente considerado, o artigo 16, explícito: alterações em regras eleitorais só podem ser aplicadas a eleições ocorridas um ano após a modificação na lei. Um conjunto de solidez inviolável — com o qual não se joga, o qual não se negocia, não se golpeia — e leitura cristalina: a PEC proposta não teria efeito súbito caso Michel Temer afinal caísse. Ponto final.

Ponto final?

Não.

Os governistas erraram ao firmar com a oposição o acordo que resultou na aprovação, por unanimidade, do tal projeto na CCJ. E os petistas e suas linhas auxiliares talvez não tenham sido ingênuos ao festejar essa vitória.

Convém aos governistas que reflitam sobre o histórico recente de interferências do Judiciário no Legislativo, e que, portanto, ponham as barbas de molho se o compromisso que negociaram com os esquerdistas decorrer de inabalável fé no respeito à Constituição, da certeza de que os artigos citados sejam imexíveis e, pois, da convicção — também oportunista — de que, pelo menos em 2017, teriam o controle sobre a eventual sucessão do presidente.

Não quero instruir parlamentar sobre a importância de conhecer a história do Parlamento, mas não seria aconselhável certo cuidado ao cerrar pacto de compreensão constitucional com aqueles — os petistas — que se negaram a assinar a Constituição em vigor?

Escrevi que os esquerdistas talvez não tenham sido ingênuos ao comemorar o que pareceria passo modesto porque tenho a impressão, cada dia mais nítida,de que ora investem em que essa emenda avance no Congresso — sob o consenso de que sua aprovação não poderia resultar em aplicação imediata — para que, uma vez confirmada, recorram ao Supremo questionando o entendimento daqueles artigos constitucionais e exigindo emprego instantâneo da eleição direta.

O leitor duvida?

Repare, então, na atuação de partidos como Rede e PSOL, especialistas em atentar contra o Legislativo desde dentro e a judicializar as principais responsabilidades do Parlamento para o qual elegem — ou no qual infiltram — representantes. Vejo até o ministro Luís Roberto Barroso — apaixonado pelo clamor das ruas, e criativo constitucionalista que é — pronto para matar a causa popular no peito e estufar a rede.

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Uma questão de ordem lógica. Por que o PT e suas linhas auxiliares consideram o Congresso ilegítimo para — caso Michel Temer caia — eleger o próximo presidente da República, conforme expresso na Constituição Federal, mas legítimo para promover uma emenda constitucional?

Eles não têm resposta para isso.

Como explicar que um Parlamento tratado — pelos mortadelas — como lixo esteja, segundo os próprios embutidos, habilitado a alterar a Carta Magna, mas inabilitado a preservá-la? Por que, aliás, o impeachment de Dilma Rousseff, de rito estabelecido na Constituição, era golpe, e a eleição direta — segundo se deseja agora, de forma não prevista na Lei Maior — seria conquista da democracia?

Eles não têm resposta para isso.

Convictos sobre a podridão do Legislativo, e se minimamente preocupados com o destino do país, o correto — o coerente — não seria que os esquerdistas trabalhassem contra qualquer mudança essencial na Constituição, sobretudo se para modificar as regras do jogo enquanto a bola está rolando?

Mais do que não terem resposta para isso, eles não podem responder, ou exporiam a índole, essencialmente contraditória, do oportunismo em que operam, arrivismo que posa nu sob o sol quando voltamos 20 anos no tempo para perguntar se os que hoje militam pela eleição direta para presidente não são os mesmos que, em 1997, chamavam de golpista (com razão, diga-se) a emenda constitucional pela reeleição, a mais baixa obra de Fernando Henrique Cardoso, que transtornou o desenho do tabuleiro mesmo com as peças em movimento. Hein?

O que terá mudado em duas décadas? Nada. A vida pública não foi reformada pelo tempo: a atividade política no Brasil não amadurece, não é balizada por convicções, por compromissos com valores, pelo respeito à norma legal, mas pelo cupim moral que corrói a institucionalidade e abre os veios — os dutos — das vantagens ao projeto de poder de turno.

Uma emenda constitucional é somente uma picada para o Planalto — golpista ou não, a depender de quem manuseia o facão.
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São já três semanas sem se ouvir falar em Luiz Inácio Lula da Silva. De modo que repetirei a pergunta que aqui formulei em 23 de maio: não lhe parece genial, leitor, que as delações dos irmãos Batista — cuja JBS teve crescimento artificial sem precedentes durante os governos petistas — tenham Temer como protagonista, e não Lula e Dilma?

Hein, Janot?


06 de junho de 2017
Carlos Andreazza é editor de livros
O Globo

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